Devaneios
Dois mil e vinte – um ano extremo
Dois mil e vinte se mostrava como um ano alvissareiro, número redondo, início de mais uma década, tinha a esperança que finalmente a crise iria terminar depois de cinco anos.
Veio janeiro e, em meio ao calor, as notícias começaram a chegar sobre uma nova epidemia na China, pensei, vai ver que será outra gripe aviária que vai ficar mais ou menos restrita por lá, e tocamos a vida, mas as mensagens começaram a ficar mais e mais ameaçadoras de um lado e de outro, os grandes preparativos para o Ano Novo Chinês em fevereiro onde centenas de milhares de pessoas viajam na China pra cima e pra baixo, aí eu pensei, se eles podem ir e vir, a coisa não está tão ruim assim; e por aqui o Carnaval com todas suas luzes, cores, alegria e multidões.
Acabou o Carnaval e dia 25 de fevereiro embarcamos para Nova York, afinal um netinho estava para nascer, lá pelo dia 1º de março, mas eu disse que primeiros filhos geralmente adiantam e os segundos, atrasam; não deu outra, ao pisarmos no aeroporto e ligarmos o telefone, um recado do futuro papai: “Ligue para mim”, e a Juliana estava na maternidade em trabalho de parto. Foi o tempo do Andy deixar a mala em casa e sair para Stamford (1 hora de trem) e aí o bebê nasceu, fofinho e gordinho e fazedor de caretas como ele só.
Em Nova York o clima estava pesado, álcool em gel e máscaras impossível de encontrar nas farmácias, apesar de na rua não haver ninguém de máscara. O álcool em gel lá é usado há muito tempo.
Com o passar dos dias, o clima foi ficando cada vez mais sombrio, o fato de ser inverno e frio, e escurecer às 16:30 não ajudou o humor geral, a cada dia notícias mais assustadoras. A cada dia menos gente nas ruas.
Quase não saí de casa porque foi também a hora da mudança de casa: 4 dias para empacotar as tralhas, o dia da mudança e mais 2 para desempacotar, 2 dias em casa para montar móveis, encontrar o que sumiu, esconder o que deveria ficar aparente, enfim essas coisas normais de mudança.
Fomos visitar o netinho na maternidade (antes da mudança) e uma vez na casa dos papais frescos, e depois achamos melhor não correr o risco de contaminar a nova família, porque eles moram no subúrbio de uma cidade de médio porte em Connecticut e para chegar lá é preciso tomar um metrô até a Grand Central, o trem para Stamford (45 minutos se tiver sorte e pegar o expresso, senão 1 hora) e depois um táxi para a casa deles (20 minutos).
Olhando pela janela, via cada vez menos pessoas na rua, cada vez mais assustadas, as pessoas esvaziavam prateleiras inteiras de supermercados, comprando enlatados, água mineral, velas – em quantidades absurdas, panelas, frios, queijos, uma coisa alucinante, parecia que estavam se preparando para uma guerra, um furacão, sei lá…
As farmácias estavam completamente desabastecidas de tudo, remédios, artigos de limpeza, o que vier à sua cabeça, estava em falta!
Chegamos aqui dia 13 de março, antecipamos a volta em uma semana, porque meu filho, que estava como professor convidado em Princeton, no seu ano sabático, começou a ligar muito aflito, dizendo que tínhamos que ir embora, que a situação era muito grave, que nenhum seguro saúde de viagem cobriria uma hospitalização devido ao novo vírus; que no campus tinham imposto uma série de medidas como cancelamento de aulas, pratos feitos em vez de bandejão no restaurante, e a recomendação de que os professores não saíssem de seus alojamentos a não ser para fazerem as refeições.
Alterar a data da viagem pela American Airlines foi uma novela: dá para acreditar que no site da empresa há três endereços em Manhattan e todos já estão fechados há anos! Tentar pelo site e pelo telefone nem pensar, a sugestão deles era para ir ao aeroporto (JFK fica a uma hora de Manhattan), minha agente de viagens brasileira resolveu o enrosco para mim. O aeroporto estava um caos.
A American tinha cancelado todos os vôos de Los Angeles e Dallas e todos os passageiros foram direcionados para JFK, e eu tomei o último vôo para o Brasil; no avião poucas máscaras, mas muitos rostos preocupados.
Nesta data as mortes já estavam se acumulando nos EUA e também no Brasil.
As pessoas estavam desorientadas sobre o que fazer, como fazer, onde ficar, etc.
Nós viemos para a Serra da Cantareira e aqui estamos há seis meses.
Os eventos marcados e confirmados para março e os próximos meses foram caindo como dominós, e de repente você se pega pensando: o que será da vida agora, a epidemia que já tinha virado pandemia vai me aposentar? E uma nuvem cinza pairou sobre a cabeça durante alguns dias, até que a Meg Batalha e o Grupo dos CATs numa maravilhosa, espetacular e salvadora iniciativa resolveram arregaçar as mangas e foi comprada uma licença do Zoom e fomos aprender a usar a plataforma, claro que os CATS mais antenados já sabiam os macetes, e tiveram a grandeza de alma e toda a paciência do mundo de ensinar ao grupo e a esta anta eletrônica e cibernética, e, da-dam!, Eu aprendi.
Apareceram outras plataformas e fomos treinar, aprender e nos certificar. Achei algumas boas, uma ótima.
Estas primeiras semanas com os CATs foram sensacionais, porque nos comunicávamos diariamente e um maravilhoso sentimento de pertencimento, de vencer a batalha juntos foi me permeando, realmente não sei o que eu teria feito sem o grupo.
Hoje, 6 meses depois, estamos todos escolados, equipados (com computadores, fones de mesa, headsets, fones pendurados em braços, fones com nome do Abominável Homem das Neves e de Bola de Neve, e outros mais, baterias de carros, nobreaks, 2 internets dedicadas, cabeadas, mixer (de som, não de cozinha), e outras tantas traquitanas mais.
Sinto saudades das reuniões e das lives. Eram uma delícia!
Eventos, lentamente estão aparecendo, mas por enquanto, todos estão usando o Zoom, mais barato e eficiente, embora faltem alguns detalhes para ficar ótimo.
Clientes estão sendo ensinados que não adianta nós termos equipamento profissional se eles teimam em usar o microfone do computador….. quanta gente de cabeça dura! Outro dia fui chamada de “muito exigente” porque pedi que usassem fones, tá bom, vou me conformar com o rótulo.
Estamos vencendo a batalha, as vacinas parecem querer sair dos laboratórios e tenhamos fé que sejam eficazes. Temos que ter paciência e continuar tomando todos os cuidados, a doença é cruel e traiçoeira.
Óbvio que todos já estamos mais do que cheios de ficar em casa, comer a própria comida, sorte de quem cozinha bem, outros como eu, tiveram que aprender a fazer novos pratos, e não é que deu certo? Descobri que a cozinha NÃO morde.
Até decidi me mudar definitivamente para a Serra, aqui posso cuidar das plantas, fiz uma horta, que apesar da minha filha e outros internautas terem dito que os canteiros pareciam túmulos, está produzindo nossas saladas diárias.
Tudo isso – intérprete adora um papo furado – para dizer: cuidem-se, vamos vencer este desafio, não estamos sós: “ninguém larga a mão de ninguém” maravilhosa frase usada no início, a seu tempo o “normal”, qualquer que seja ele, vai voltar, e não podemos esquecer das happy hours, regadas a muitas gargalhadas e pegação no pé.
Meu profundo e sincero agradecimento a todos vocês CATs que tiveram a paciência e a boa vontade de me pegar pela mão e ensinar o caminho das pedras.
Um beijo grande,
Contato da Ana Ruth: arstraducoes@gmail.com
Revisora: Márcia de Camargo – Intérprete e tradutora.