PodCATs Países Nórdicos
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Entrevista com Flora Botelho, intérprete residente na Dinamarca
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Países nórdicos são todos iguais?
Bom, eles têm muitas caraterísticas em comum, mas não, não são todos iguais. Os países nórdicos são Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia, Islândia, Groenlândia e Ilhas Faroe. Entres estes as diferenças culturais e até mesmo socioeconômicas são maiores. A Groenlândia tem uma população inuíte, com cultura, língua e fenótipo específicos, mas foi colônia da Dinamarca até 1969, e ainda hoje é parte integrante do reino dinamarquês. As Ilhas Faroe são também um território dependente da Dinamarca; a Islândia foi um território ocupado por noruegueses, em uma ocupação tardia, posteriormente passou as mãos da Dinamarca e só se tornou independente no início do século XX. Já a Finlândia tem uma composição muito distinta. É um país que culturalmente representa uma mistura, ou uma sobreposição da Europa do norte com a Europa do leste. Eles foram parte da Suécia até por volta de 1800, e depois passaram a ser parte da Rússia. Hoje eles têm uma população um pouco mais diversificada, com algumas características dos povos da Sibéria, enquanto os países escandinavos, com exceção dos Sami no norte da Noruega, têm uma população muito homogênea. A língua é completamente diferente das línguas germânicas; é de raiz urálica e não tem relação com nenhuma língua indo-europeia.
Seria possível descrevê-los de forma similar aos escandinavos, quer dizer, pode-se dizer que os nórdicos são, de forma geral, reservados, racionais, modestos, honestos. Mas a verdade é que os finlandeses são tudo isso de outro jeito. É outro registro cultural, outra forma de interagir.
Entre os três países da Escandinávia (Noruega, Suécia e Dinamarca), as semelhanças são maiores, eles têm uma história de formação nacional muito imbricada, os reinos sempre mudando de mãos, e as fronteiras sendo redesenhadas. As línguas são muito semelhantes, mutualmente inteligíveis, ou seja, pode-se conversar em dinamarquês com um sueco ou norueguês que então responde na sua própria língua. A Escandinávia era terra viking antes da cristianização, os três países têm então esse passado comum, e se tornaram luteranos em 1500, com a reforma protestante.
As escolhas políticas e sociais mais recentes também são muito semelhantes nesses três países, eles todos tendem a adotar uma postura de neutralidade em política internacional, os três têm o famoso estado de bem-estar social, com impostos altos e os benefícios públicos chamados universais (educação, saúde, e auxílios extensivos). São países com altíssima qualidade de vida, considerável igualdade de gênero, baixíssima corrupção. Enfim, os valores sociais e democráticos são muito fortes, e realmente praticados aqui.
Quais são as diferenças básicas entre eles?
Entre os países escandinavos eu diria que as diferenças são tão sutis para quem vem de fora que elas são praticamente imperceptíveis. Mas de forma geral, a Suécia tem uma cultura mais rígida, mais respeito à autoridade institucional, mais regras, mais controle social do que a Dinamarca. A Dinamarca (nesse contexto, não pra quem vê de fora!) é mais relaxada, menos rígida. E a Noruega é mais provinciana, eu diria. Menos inovação, criatividade, arte, variedade. A Suécia também se destaca por um feminismo mais radical, uma adoção de política de gênero que busca igualdade em todos os níveis, enquanto a Dinamarca e a Noruega preservam uma diferença de papéis de gênero mais tradicional. – Isso não quer dizer patriarcalismo ou machismo da forma que conhecemos no Brasil! O nível de igualdade, liberdade sexual, de expressão, de escolha, e o reconhecimento na esfera pública que as mulheres alcançaram aqui é muito grande.
De forma geral, os três países têm uma cultura forte de participação cívica, respeito às regras sociais, responsabilidade, cidadania. Com uma ética protestante forte, quer dizer, dão muito valor ao trabalho, à diligência e à autonomia financeira, ao mesmo tempo que são modestos, inconspícuos. São países muito seculares, o papel da igreja é mais cultural do que religioso de fato, e os valores cristãos que praticam tomam a forma secular de humanitarismo.
A Dinamarca é mesmo o país mais feliz do mundo?
Não! De forma alguma! Isso foi uma campanha de marketing de turismo baseada em pesquisas que focavam na qualidade de vida e na satisfação dos cidadãos com aspectos da vida prática. Mas as pessoas aqui, assim como nos outros países nórdicos, têm alto índice de depressão e outros problemas de saúde mental. As pessoas se sentem sozinhas, isoladas, descrevem estados de angústia permanente, um certo niilismo, uma sensação de falta de propósito… hoje a crise da psiquiatria é uma das pautas mais debatidas em política dinamarquesa.
Os opostos se atraem?
Nesse caso, os trópicos e os nórdicos? Acho que não. Acho que não são todos de países e culturas “quentes”, para dizer dessa forma, que se sentiriam bem aqui. Eu me sinto um caso à parte e ainda assim, não são só rosas… Viver, trabalhar, namorar, o que seja, uma relação com um nórdico exige um grau de adaptação, de percepção, e uma capacidade de se ajustar à forma deles de pensar e agir. Por outro lado, para os que querem se ajustar, como eu quis, há várias vantagens – a comunicação é clara, as intenções transparentes, eles são muito pragmáticos, muito eficientes, focados no resultado, na solução do problema. É muito satisfatório, porque tudo fica mais simples, não se complica, não se enrola.
As culturas são muito conflitantes?
São. De forma geral, o brasileiro se sente à vontade tanto para fazer quanto para pedir favores, opiniões, sugestões. Já aqui, as pessoas têm um senso de autonomia bem radical. Cada um cuida do seu, não se espera ajuda e nem ninguém se sente na menor obrigação de ajudar; e tanto fazer quanto esperar deles esse tipo de solidariedade interpessoal, de envolvimento na vida um do outro costuma ser experienciado como uma transgressão. No trabalho, as pessoas são extremamente autônomas, proativas e responsáveis pelo próprio trabalho. Na Dinamarca principalmente, trabalha-se quase sem hierarquia, o chefe pode direcionar o trabalho, mas empregados precisam concordar e não esperam ser supervisionados. Ao mesmo tempo, é uma cultura altamente informal, direta, franca. Não se usa deferência, não se usa tratamento de respeito, como senhor(a) ou sobrenomes.
E na área de negócio? O jeito brasileiro é muito disruptivo para eles?
Não acho que o brasileiro seja disruptivo aqui.
Os escandinavos, de forma geral, têm uma impressão positiva do Brasil, mesmo que talvez um pouco vaga. Eles admiram esse jeito mais efusivo, mais espontâneo do brasileiro, e tentam mesmo acomodar, ou abraçar isso, apesar de nem sempre saber como. O que pode ser difícil é talvez uma tendência do brasileiro de se comunicar de forma ambígua, ficar “com dedos”, como dizemos – por diversas razões, medo de impor sua posição, tentativa de deixar espaço pro outro lado decidir, medo de “ficar chato”, e talvez uma reticência, simplesmente, em ser completamente transparente, se expor. Isso não é compreensível para os nórdicos. Eles ficam confusos, não sabem como interpretar, como responder.
Como foi a comunicação entre brazucas e suecos? Deu samba ou deu a dança típicas deles (não sei qual)?
Sueco não dança! Deu Abba! Não (rs), isso é brincadeira. O workshop no qual eu fiz a tradução consecutiva entre uma empresa de São Paulo e uma empresa aqui do sul da Suécia funcionou muito bem. Acho que os brasileiros entraram bem no ritmo dos suecos, os suecos foram muito abertos também, e todos realmente queriam uma parceira com lucro para os dois lados, e trabalharam juntos para atingir isso. Com minha ajuda, modéstia à parte.
Todos os nórdicos falam inglês?
Sim, principalmente nas cidades, todas as pessoas falam inglês fluente. No campo encontram-se pessoas mais velhas que não falam bem, mas mesmo ali os jovens são fluentes em inglês.
É esse o idioma de negócios?
Eu diria que sim, mas, claro, negócios internacionais. Entre eles, eles falam a própria língua. A verdade é que para a maioria deles não faz muita diferença, eles falam inglês com toda facilidade e naturalidade, são capazes de manter qualquer conversa em inglês para incluir um estrangeiro.
E quais as dicas para brasileiros não criarem embaraços na hora de falar sobre negócios?
Eu sugiro franqueza. O nórdico não é simplesmente honesto, ele é franco. Ele diz as coisas como elas são, sem floreios, sem maquiagem. São explícitos. Eles não sabem interpretar nem ironia, nem polidez – eles só veem isso como falta de clareza.
Por outro lado, você pode dizer exatamente como se sente e o que quer – por exemplo, responder a um convite para uma cerveja com “não estou com vontade de sair, vou ficar em casa” – e isso nunca será tomado como uma ofensa ou falta de consideração. É completamente legítimo.
Outra coisa importante é esperar as pessoas terminarem de falar. Eu até hoje acho difícil. Brasileiro tem um ritmo na conversa em que interromper um ao outro não é falta de educação; na verdade muitas vezes é mesmo uma demonstração de interesse na conversa, de entusiasmo. Mas os nórdicos experienciam isso como transgressivo, e rude, mesmo. Claro que se isso acontece contigo você não será julgado. As pessoas que estão num contexto multicultural podem entender diferenças. Nesse caso, explique-se, peça desculpa, e tudo bem. Mas de forma geral, tente sempre esperar pelo fim da fala antes de dizer algo. E isso vale também nos momentos mais descontraídos como jantares e drinks. Ninguém aqui fala junto como no Brasil, a conversa continua sendo um de cada vez.
Por último, venham preparados para uma cultura de alto consumo alcoólico. Os nórdicos bebem em praticamente todos os contextos sociais, e eles têm uma tolerância alta. Não é fácil acompanhar, e ainda menos manter o profissionalismo. Então, não se sintam pressionados a acompanhar o ritmo deles, e cuidado com o tamanho dos copos!
Quais setores dos países nórdicos vão investir no Brasil com o governo Lula?
Os países nórdicos estão em uma crise iminente, porque o consumo aqui é altíssimo, o que significa que a emissão de gás carbônico per capita é muito, muito acima da média global (por volta de quatro vezes), e grandes setores da economia deles é baseada em energia não sustentável, produção exploratória, degradante. A Noruega vive do petróleo e do gás natural; a Dinamarca já abandonou a extração de petróleo, mas ainda tem um setor agropecuário muito grande, de produção não sustentável (que inclusive é alimentado por soja brasileira, ou seja, parte de todo esse ciclo). Ao mesmo tempo, a capacidade desses países de investir em desenvolvimento tecnológico, inovação e produção de conhecimento e soluções é alta. Então o meu palpite – isso vindo de alguém que não é especialista no assunto – é que cada vez mais empresas aqui estarão interessadas em colaborar com produção sustentável, desenvolvimento de energia renovável e tecnologia que permita a diminuição do impacto no meio ambiente. O Brasil pode pensar em formas de oferecer esses produtos (que serão com certeza cada vez mais atrativos) ou de importar o conhecimento e a tecnologia daqui para gerar inovação no Brasil. Os países nórdicos têm recursos, amplas possibilidades de atrair investimento e infraestrutura. Essas são as vantagens em parcerias com eles.