O ritualismo japonês e a cordialidade brasileira
O ritualismo japonês e a cordialidade brasileira
Anna Ligia Pozzetti de Abreu
No momento de organizar um evento com a presença de japoneses, ou de receber uma comitiva do Japão para uma negociação, um dos fatores primordiais é contratar um tradutor e intérprete profissional com profundo conhecimento sobre a cultura e o idioma japonês.
Este pequeno texto indica apenas alguns aspectos culturais e linguísticos que evidenciam diferenças significativas entre o brasileiro e o japonês em diversas esferas, tentando eliminar visões deterministas e até mesmo preconceituosas sobre o tema. O Brasil e o Japão têm mais de um século de boas relações e apesar dessas diferenças culturais, parcerias importantes foram firmadas ao longo do tempo. E respeitar essas especificidades tem sido uma das chaves para o sucesso nos negócios!
Muitos brasileiros têm uma visão de que os japoneses são “fechados”, frios, e também muito rigorosos. Mas a formalidade e a cordialidade japonesa (muito conhecida como omotenashi) não é algo artificial e é importante ter essa noção para que essas atitudes permeiem também as relações profissionais.
Em primeiro lugar, é preciso fazer uma distinção entre a cordialidade brasileira e a cordialidade japonesa. A primeira foi tratada por Sérgio Buarque de Holanda em seu clássico “Raízes do Brasil”, no capítulo 5, intitulado “O Homem Cordial”. Segundo o autor, a cordialidade, que é traço característico do brasileiro, definido como o “homem cordial”, está ligada ao horror às distâncias e à aversão ao ritualismo social. É o nosso famoso “sinta-se em casa, não faça cerimônia”, que funciona muito bem, obrigada!
Segundo o mesmo autor, no campo da linguística, essa busca por uma proximidade se dá pelo uso do diminutivo e da eliminação do nome de família no tratamento social. Isso traz uma sensação de familiaridade com o seu interlocutor, mesmo que se conheçam há pouco tempo. Tem-se um desejo de estabelecer intimidade, tornar-se amigo, para só então fechar negócios ou iniciar uma parceria. No “homem cordial”, os traços de fundo emotivo prevalecem sobre o racional, afastando-o da polidez. E são essas características que nos fazem brasileiros, tão elogiado pelos estrangeiros com nossa cordialidade e hospitalidade!
Para esse mesmo autor, o brasileiro se comporta de forma exatamente oposta ao japonês, para quem “o ritualismo invade o terreno da conduta social para dar-lhe mais rigor” (HOLANDA, 1936 p.110) e a demonstração de respeito e noção de polidez chegam a parecer uma reverência religiosa.
Pode ser difícil para um brasileiro compreender essa postura dos japoneses no ambiente de negócios. Mas, como indica a antropóloga Ruth Benedict, “todo japonês primeiro adquire o hábito da hierarquia no seio da família e posteriormente o aplica nos campos mais vastos da vida econômica e do governo” (BENEDICT, p. 53).
Segundo a autora, uma das primeiras lições de um bebê consiste em mostrar respeito ao pai e ao irmão mais velho. Para ensinar isso, a mãe abaixa a cabeça do filho para cumprimentar até mesmo membros da mesma família. De uma forma geral, a hierarquia, que abrange as distinções de sexo, geração, status, relação entre chefe e subordinado, etc., tem como base o que foi aprendido dentro de casa.
No domínio da linguagem, há numerosas regras e convenções detalhadas em que cada cumprimento ou cada fala deve indicar a distância social que existe entre as pessoas. Para começo de conversa, utiliza-se sempre o sobrenome do interlocutor e nunca o seu nome. E os japoneses têm o que pode ser traduzido como uma “linguagem de respeito”. Essa linguagem, extremamente polida, mostra como a pessoa que a utiliza considera o seu interlocutor.
Quando o objetivo é mostrar respeito, elevando o seu interlocutor que está hierarquicamente superior a você, utilizam-se as expressões de respeito (sonkeigo). Por outro lado, no momento em que se fala de si mesmo, perante alguém que se considera superior, tem-se as expressões de modéstia (kenjogo). Assim, numa conversa, essas expressões são utilizadas de forma conjunta, mostrando-se modéstia e respeito, ao mesmo tempo.
Essas noções da cultura e do idioma ajudam a compreender a força do ritualismo japonês presente nas relações profissionais. Não é algo artificial e está profundamente enraizado na cultura do país, assim como a famosa cordialidade brasileira!
Agora, consegue imaginar contratar um intérprete que não tem um profundo conhecimento desses aspectos do idioma e da cultura japonesa? Pequenos detalhes para brasileiros podem ser decisivos para os japoneses e é melhor não economizar na comunicação e colocar tudo a perder.
Referências Bibliográficas
HOLANDA, Sérgio Buarque. (1936), Raízes do Brasil. 1ª edição. São Paulo, José Olympio.
BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada: padrões da cultura japonesa. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.
Conheça a Anna Lígia Pozzetti – intérprete de japonês, inglês e português
Trabalho com tradução e interpretação desde 2012. Sou formada em Ciências Econômicas pela Unicamp, e mestre em História Econômica, pela mesma Universidade, com pesquisa sobre a transição do feudalismo ao capitalismo no Japão. Sou fluente em japonês, por conta dos 6 anos que morei neste país quando criança e também pelo ano em que frequentei o curso de Ciências Econômicas e Políticas na Universidade de Waseda, em Tóquio. Atuo no mercado de tradução e interpretação nas áreas de negócios, agricultura, mobilidade, esporte, economia, finanças, engenharia, entre outras.