Me bata uma garapa! Baianês e tradução!
Me bata uma garapa!
Autora: Jacqueline Moreno
A música “Querelas do Brasil” composta por Maurício Tapajós e Aldir Blanc e primeiramente interpretada por Elis Regina no álbum Transversal do Tempo, revela em verso e prosa, o quanto que o “Brasil não conhece o Brasil”. São tantos matizes e nuances na nossa pátria mãe gentil!
Só que no mundo dos profissionais tradutores e intérpretes, é necessário conhecer muitas culturas, linguagens e sotaques de vários países e não somente ser proficiente em idiomas. Além do vasto entendimento sobre várias áreas do conhecimento, é preciso compreender as entrelinhas da comunicação com embasamento linguístico para dar conta dos desafios inesperados e “pegadinhas” do caminho.
O CAT “Causo” da semana é um bom exemplo da versatilidade mental que o ofício da interpretação simultânea nos impõe.
Lá estava eu traduzindo um evento médico na área de obstetrícia com glossário devidamente atualizado na companhia da minha parceira de cabine. O ritmo do orador estava bem compassado com os termos técnicos cirúrgicos bem no “estado da arte” e “padrão ouro”. Depois de 20 minutos de interpretação, chegou a minha vez de assumir o microfone, bem na hora da mudança de palestrante. Esta é uma forma natural de fazer a troca, uma vez que o tom de voz muda e a transição entre uma intérprete e outra fica mais harmônica.
A próxima palestrante era uma obstetra com sotaque fortemente nordestino e tinha um jeito bem descontraído e amigável de se apresentar. Era também PhD em reprodução humana e pela forma eloquente de falar, parecia ser também doutora em comunicação. Enquanto explicava os resultados da sua recente pesquisa, um participante interrompeu o raciocínio dela fazendo uma pergunta visivelmente fora de propósito. A palestrante respondeu educadamente que aquele questionamento não se aplicava aos achados apresentados, e sem perder tempo, deu continuidade a sua explanação.
Não demorou muito, o mesmo participante interrompeu a pesquisadora abruptamente. Ela então parou de falar e esperou ele fazer seu longo comentário, notoriamente fora de contexto. Ela então olhou para ele, olhou para a plateia e disse:
– Na Bahia, a gente prefere aproveitar a ocasião para descontrair. Senhor, me desculpe, mas o que falou realmente não procede, Pode me fazer um favor?
O participante pego de surpresa, respondeu:
– Sim senhora! Do que precisa?
Ela respondeu sem titubear:
– Me bata uma garapa!
E continuou:
– Agora quero ver como foi que a intérprete traduziu esta expressão!
Eu, baiana da gema que sou (por sorte!) tinha a tradução na ponta da língua e havia traduzido “give me a break”, ou seja, “”me poupe!” ou sendo mais coloquial ainda, “não me encha o saco”.
O professor americano que estava ouvindo a interpretação simultânea começou a rir e todo mundo o acompanhou.
A palestrante não perdeu o “rebolado” (este termo é bem baiano também) e disse:
– Traduziu certinho! A intérprete só pode ser nordestina!
Ela acertou!
No final, o professor americano foi até a nossa cabine para agradecer pelo nosso trabalho e pela nossa presença de espírito.O participante falastrão, se comportou.
Se Maurício Tapajós e Aldir Blanc estivessem presentes no evento, poderiam até pensar em mudar aquela parte da letra da música e substituí-la por ” O Brasil conhece o Brasil”. Porque traduzir é muito mais do que saber falar o idioma. Traduzir é interpretar a linguagem de quem se expressa, respeitando as suas as mais originais idiossincrasias culturais.
E como dizemos no Brasil, eu e minha “concabina” (parceira de cabine) brocamos na tradução. Como você traduz brocar no seu idioma?
Veja algumas expressões do “baianês” na matéria do Correioda Bahia: Acerte o significado dessas expressões e prove que sabe tudo de baianês.
*Jacqueline Moreno é tradutora/intérprete simultânea, parceira do Catálogo de Tradutores, professora e diretora executiva da Vegah Comunicação internacional.