Voz é Poder
Recentemente li um artigo científico que me fez pensar sobre o nosso Poder (com maiúscula) como agentes de comunicação ao atuarmos como intérpretes em conferências, projetos comunitários, tribunais, chão de fábrica ou salas de aula. Tenho me debatido sobre a relação causa-efeito da palavra audível (ou em língua de sinais); essa palavra que ganha forma, instantânea e dificilmente passível de retificação. O meu foco está na nossa interferência ativa por meio discursos que têm um poder enorme de causar as mais profundas transformações no mundo. E, ao mesmo tempo, podem violar nossos mais íntimos valores.
Ao fim e ao cabo, o discurso final é nosso. Conferimos legitimidade à mensagem original. Até que ponto, na escolha das palavras, nos equivalentes linguísticos mais adequados e na ordem em que vocalizamos, interferimos de acordo com nossas referências e posições políticas, ideológicas e – sobretudo – pessoais? Até que ponto, um discurso original sofre alterações, conscientes ou não, de forma intencional ou disfarçada, suavizando ou enfatizando um viés de natureza oposta ou em conformidade com nossas crenças, sentimentos, ideias, convicções e contrariedades mais legítimas?
Devemos questionar nosso trabalho interpretativo o tempo todo. Não apenas quanto aos nossos limites e capacidades, mas também sobre suas consequências. Não somos inteligências artificiais ocupando uma posição neutra e invisível entre interlocutores. Ao contrário. Estamos inseridos na narrativa e interferimos ao formular uma possibilidade interpretativa, que é exteriorizada, conforme construímos a tal ponte entre língua A e B nos mais variados contextos sociais, políticos e culturais nos quais soltamos a voz.
Querendo ou não, ideologia é parte crucial da linguagem, e o discurso é uma forma explícita de poder. Tempos escuros e perigosos estamos vivendo. Não há setor, ambiente, país ou indivíduo que não esteja sendo afetado pelos contrassensos e acontecimentos de ordem política, social, econômica e ambiental. Ora estamos em ambientes de negócios, ora a ciência pede a palavra, ora o debate político muda os rumos da nação, ora tudo parece, mas não é. E é aqui que o nosso limite de “neutralidade” é colocado em risco. Aliás, não apenas nossa neutralidade, mas também nossa liberdade de escolha de estar ou não presente, aceitando ou não esse ou aquele trabalho de interpretação. Ao sermos neutros, somos cúmplices? Ao não aceitarmos um trabalho, somos omissos? Será que há um determinante financeiro que influi na nossa decisão de aceitarmos um trabalho que possa contribuir para piorar, drasticamente, as coisas?
Nossa sociedade é controlada por discurso. Seja fake, seja real, o discurso tem papel central nos mecanismos de exclusão e repressão, de intervenção e participação. Caberá a nós, a responsabilidade ao escolher entre o culto e o informal, o mais educado e o mais cordial, o menos politizado e o mais real, o mais apropriado e o menos cáustico ao darmos forma – em palavras – à mensagem. As circunstâncias pressupõem a utilização dos códigos que serão empregados. O importante é a fidelidade ao discurso original e nenhum desvio na norma e na ética profissional.
O que me pergunto é sobre os limites de nossas escolhas, e não apenas sobre nossa capacidade de produzirmos sentenças gramaticalmente bem formadas, coerentes e claras.
Podemos assumir o papel não apenas de mediadores, mas também de criaturas monstruosas, vivendo entre dois mundos, na invisibilidade. Podemos inspirar e fomentar tanto a admiração quanto desconfiança e desprezo. Essa não é uma ideia original minha, ok? Acadêmicos e pensadores já se debateram em vida e alguns devem se sacudir no túmulo sobre essas mesmas questões.
Temos, muitas vezes, sentimentos opostos causados pelo desejo de estar próximo aos palestrantes pelo brilho de suas ideias e visões de bem comum e, em outros momentos, não queremos aceitar sermos os elos nos processos manipuladores de suas palavras mentirosas, destrutivas e desprezíveis. É uma linha tênue que separa estes lados opostos. Nessa hora não há como se refugiar no silêncio ou gaguejar nas palavras.
Idealmente, eu prefiro uma prática que seja mais engajada politicamente e socialmente mais justa. Justifico-me amparado pelo momento em que estamos vivendo. Tenho a clara visão de que não sou – per se – a intenção ou ação das partes comunicantes, mas não posso fugir do comprometimento participativo ao dar voz a elas. Não há como ser imparcial ou neutro ao falar. A voz tem um poder imensurável.
Não há como estar ausente ou distante em um contexto no qual somos a voz. Em nossa produção de discurso, em um dado contexto, não nos é permitido desafiar a autoridade do palestrante, mas podemos nos recusar a aceitar um determinado trabalho que venha a reforçar uma ideologia que esteja em total rota de colisão com nossos princípios mais humanitários. O pior são as surpresas. Alguém pede a palavra e, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come e você não quer ser amigo do bicho. Tem que abrir o bico.
Nossa relação com a palavra, as ideias e ideologias é muito íntima e por vezes, promíscua. O que me motivou a escrever tudo isso foi o questionamento sobre o impacto e repercussões do conteúdo de nossas mensagens. É crucial termos em mente nossa medida de influência e poder ao sermos os elementos chave no ato comunicativo. Ao escolhermos um trabalho iremos processar e transformar ideologias, além do aspecto linguístico. Bom é estar do lado certo.
Nossas palavras mudam o mundo. Não há como ignorar esta dimensão e responsabilidade.