Transducere: conduzir culturas para além das palavras
Transducere: conduzir culturas para além das palavras
Como é obvio, mas nem todo o mundo sabe, traduzir não se trata somente de transcrever palavras de um sistema linguístico para outro: traduzir, do verbo latim transducere significa “conduzir para além”. Aqui cabem duas perguntas: para além do quê? E o que estaríamos nós conduzindo? Conduzimos um texto que contém palavras, e tais palavras transportam ideias, culturas e emoções; estão carregadas destes elementos! Este texto tem de chegar “para além” da fronteira que define o fim de uma cultura e o início da outra. Chegar ao outro lado da tal fronteira (que muitas vezes se transforma em uma espécie de membrana plasmática, uma membrana celular que permite um processo de osmose bidirecional de elementos culturais) significa fazer com que os participantes de duas culturas diferentes (entre si) possam ter acesso a um conteúdo linguístico da mesma forma, com a mesma modalidade. Como é claro, isto nem sempre é possível.
Os autores latinos utilizavam diferentes verbos para indicar a atividade da tradução: vertere, convertere, transvertere, imitari, reddere, transferre, exprimere, interpretari, absolvere, ludere, insequi. O verbo mais utilizado, o verbo interpretari, “fazer de mediador”, “negociar”, “interpretar”, estava diretamente relacionado com o substantivo interpres, ou seja, “intermediário”, “mediador do preço”. A etimologia deste termo é aleatória e decorreria de inter-pretium, “entre o preço” (segundo o linguista Gianfranco Folena) e Cícero (autor latino do século I a.C.) que também clamava orgulhosamente o seu direito de convertere os textos gregos enquanto orátor e não enquanto interpres. Por sua vez, o termo transferre também significava “mudar”, “transportar” e a translatio era o “transporto”, a “transferência de dinheiro”. É só com Séneca (I século a.C.) que o termo translatio passa a ser utilizado com o sentido metafórico de “transposição”, “versão” de uma língua para outra.
No ensaio Volgarizzare e tradurre (1991), Gianfranco Folena percorre a história da tradução entre a Idade Média e o Humanismo europeu e documenta que o verbo traducere, para assinalar a versão de grego para latim, surge após o autor italiano Petrarca (1304-1374). Leonardo Bruni (1370-1444), tradutor de ambas as línguas clássicas, em 1420 escreveu o ensaio De interpretatione recta, que tão recta, ou seja correta, não foi: no tal ensaio devido a um erro de interpretação de uma expressão do autor latino Aulo Gélio (II século d.C.), Vocabulum graecum vetus traductum in linguam romanam, cujo significado era que a palavra grega tinha entrado no vocabulário latino, e não que havia sido traduzida para o latim, inaugura e reforça o destino da família terminológica traducere, traductio, traductor que, forte na sua inédita caraterização semântica, se impôs sobre os antigos sinónimos transferre, translator, interpretari, interpres e outros, chegando a primar, pelo menos nas línguas neolatinas, sobre todos os outros termos utilizados até aquela altura e dos quais falamos. Segundo a opinião de Folena, Leonardo Bruni precisava de um termo novo que não fosse semanticamente gasto, tal como é o caso de transferre, e que salientasse a operação de transplante de uma língua em outra, tudo isto com um carácter mais enérgico e flexível. O antigo transferre, nas suas formas translator, translatio, traductum ficaram na cultura britânica e geraram o verbo to translate, o substantivo translation, o adjetivo translated e por aí afora.
Ao tratarmos de tradução não podemos deixar de pensar no fato de uma língua ser expressão de uma cultura. De facto, porque é que existe uma palavra? Qual é a razão pela qual algumas culturas incluem no seu léxico algumas palavras que em outro universo cultural não existem ou apenas existem porque formam parte dos chamados empréstimos linguísticos (que talvez teríamos de chamar “empréstimos culturais”)? E reparem bem que, de forma deliberada-consciente, não estou utilizando o termo País porque dentro de um País podem existir mais do que uma cultura. Uma palavra existe para podermos identificar um elemento que pertence à nossa cultura.
E a razão é a mesma pela qual tais palavras (ou conjunto de palavras) que existem numa cultura e, portanto, na respectiva língua, mas não existem noutra, são catalogadas como culturemas (realia, no seu termo latim). Ou seja, isto tudo é expressão de signos linguísticos compostos, carregados de significados.
Portanto, o que é que um tradutor é chamado a fazer? Como dizia a minha professora de interpretação consecutiva de inglês para italiano (mas isso não se aplica apenas à interpretação, tem a mesma validade quando falarmos de tradução escrita), “we are concerned with meaning, not with words”. Vejam bem: “concerned with meaning”. Nós, os profissionais da área da tradução, quer oral (portanto, interpretação), quer escrita (que definimos tradução), nos relacionamos com o significado das palavras. O significado, a semântica, é a nossa área de atuação.
Se apresentarmos este assunto utilizando as palavras da área da semiótica, poderíamos dizer que o nosso objetivo não é encontrarmos um significante comum às duas línguas com as quais estamos trabalhando, mas sim encontrarmos um significado comum. É por isso que moldamos a língua de chegada, visando obter nesse texto o mesmo resultado comunicativo, enfático, emotivo, expressivo e por aí afora. Se na língua de chegada qualquer termo corresponder (se for o caso, conforme as devidas estruturas morfológicas) ao termo da língua de partida, isto tem de ser feito a partir de uma abordagem de baixo para acima, ou seja, do significado para o significante.
Uma língua é um recurso, é um meio, é uma ponte. Uma língua é reveladora de uma cultura. Uma língua é um significante cujo significado é a cultura que descreve.
É por isso que segunda, terça, quarta, quinta e sexta vão ser traduzidos por lunes, martes, miércoles, jueves e viernes em espanhol, respeitando a origem cristã e pagã dos dias da semana.
É por isso que a frase de Luíz Vaz de Camões “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” está carregado de significado só para quem for lusófono ou tiver estudado Os Lusíadas.
É por isso que não podemos traduzir o verbo português manusear (mover ou mexer muito com as mãos em alguma coisa) com o verbo espanhol manosear (tocar repetidamente alguém com as mãos, geralmente com intenção erótica).
É por isso que não existe uma única tradução certa, mas existem diferentes formas de traduzir a mesma ideia.
É por isso que falamos sempre de contexto de realização de um evento linguístico, quer oral, quer escrito.
É por isso que acredito que a tradução seja um processo de transcriação que visa aproximar o autor de uma língua ao leitor da outra.
Federico Giannattasio – Intérprete e tradutor de italiano
FORMAÇÃO: 2015 – Mestrado em Tradução e interpretação de conferência 2016 – Curso de especialização Medical Interpreting – Curso de atualização de língua portuguesa para intérpretes – Certificação de língua portuguesa (DAPLE) – 2016/2019 – Doutoramento em linguística junto da Universidade de Évora INTERPRETAÇÃO: (86h): En-It-En. Cursos de formação em Applied Behavior Analysis (ABA) – (35h): En-It-En. Assembleia da UNIMED (universidades do Mediterráneo) – (24h): Es-It-Es. Violação dos direitos democráticos (6h): En-It-En. Encontro de Amnistia Internacional Itália con Ruhal Ahmed -(35h): En-It-En e Es-It-Es. Festival Sabir (migração) – (3h): Pt-It. Conferências Mnemotopias – (6h): It-Pt-It. Seminário LIBRAS – (4h): En-It-En. Conferência com os fundadores do Weather Underground Movement – (45h): It, Esp, En > Pt. Annual Meeting da Ong AVSI – TRADUÇÕES LITERÁRIAS: Almeida Garrett, Viaggi nella mia terra – Carlo Mea, Visualizzazione: il potere di trasformare la realtà.