Como a linguagem molda a forma como percebemos o mundo
Palavras não são apenas ferramentas de comunicação. A forma como nomeamos objetos, descrevemos emoções e narramos eventos não apenas reflete, mas também molda a forma como pensamos, sentimos e percebemos o mundo ao nosso redor.
A relação entre linguagem e percepção é um campo amplamente explorado na linguística, na psicologia cognitiva e na antropologia. Teorias como a de Sapir-Whorf, também conhecida como hipótese da relatividade linguística, sugerem que o idioma que falamos pode influenciar profundamente nossa visão de mundo. E, à luz de descobertas contemporâneas, fica cada vez mais claro que a ****linguagem não apenas descreve a realidade, ela também a constrói.
Linguagem como ferramenta de percepção
Ao longo da história, diferentes culturas desenvolveram diferentes formas de categorizar e nomear aspectos da realidade. Essa diversidade linguística é muito mais do que uma questão de vocabulário: é um espelho das necessidades, valores e experiências de cada sociedade.
Por exemplo, algumas línguas têm dezenas de palavras para descrever tipos específicos de neve ou areia, o que indica uma sensibilidade mais apurada a esses elementos; o motivo: a presença e o espaço desses elementos na realidade concreta dos falantes desses idiomas. Outras possuem termos únicos para sentimentos ou pensamentos complexos que não existem em outros idiomas, diversos termos filosóficos do alemão: a palavra “Weltschmerz”, que refere a um misto de tristeza pessoal e uma reflexão sobre a natureza da existência, uma espécie de “dor do mundo”. Tudo isso impacta diretamente a forma como os falantes desses idiomas percebem, diferenciam e interagem com o mundo ao redor.
Exemplos de como a linguagem molda a percepção
A seguir, destacamos diversos casos que ilustram como diferentes estruturas linguísticas influenciam a forma como percebemos o tempo, o espaço, as cores, as emoções, as relações sociais e até mesmo a responsabilidade individual. Esses exemplos revelam como o idioma pode atuar como um verdadeiro filtro cognitivo e cultural:
1. Tempo e espaço
Algumas línguas indígenas australianas, como o kuuk thaayorre, não utilizam palavras como “esquerda” e “direita”. Em vez disso, seus falantes se orientam exclusivamente por direções cardeais: norte, sul, leste e oeste. Assim, alguém pode dizer: “Tem uma formiga ao norte da sua perna”. Como resultado, essas pessoas desenvolvem uma noção de orientação espacial extremamente precisa, pois precisam estar constantemente cientes de sua posição geográfica.
De outra forma, línguas como o inglês ou o português tendem a estruturar o tempo de forma linear, associando o passado à esquerda e o futuro à direita. Já no mandarim, por exemplo, o tempo também pode ser representado verticalmente (o passado está acima e o futuro, abaixo), o que demonstra que a orientação espacial do tempo pode variar conforme a linguagem e influenciar a forma como os falantes pensam sobre ele.
No aymara, falado nos Andes, o passado é visto como algo à frente (por ser conhecido) e o futuro como algo atrás (por ser desconhecido), uma inversão completa da lógica ocidental e um reflexo direto de como o idioma reorganiza a experiência do tempo.
O povo dos Botocudos (os Krenak), assim como os hindus, veem o tempo como um ciclo, uma espiral que conecta o passado, o presente e o futuro. Os tempos se conectam e se influenciam; então para essas nações o fim do mundo já houve porque haverá; e o mundo (re)inicia, renasce o tempo todo. A oralidade desempenha um papel central nessas culturas. [Para aprofundar esses conceitos tão ímpares, vide a obra em português de Davi Kopenawa e de Ailton Krenak ]
2. Cor e percepção visual
A forma como uma língua classifica as cores pode impactar diretamente a percepção visual de seus falantes. Por exemplo, o russo distingue entre dois tons de azul com palavras diferentes: siniy (azul escuro) e goluboy (azul claro). Estudos mostram que falantes de russo são mais rápidos para diferenciar tons de azul do que falantes de inglês, que usam apenas uma palavra: blue.
Em outra cultura, os himbas, da Namíbia, possuem uma organização distinta das cores e agrupam os tons de forma não convencional para olhos ocidentais. Eles conseguem distinguir facilmente tons de verde que a maioria das pessoas não percebe como diferentes, mas têm dificuldade para distinguir azul de verde, já que não têm uma distinção lexical clara entre essas cores.
3. Gênero gramatical
O gênero dos substantivos também pode influenciar a forma como pensamos sobre objetos inanimados. Em alemão, a palavra “ponte” (die Brücke) é feminina, enquanto em espanhol (el puente), é masculina. Estudos mostram que falantes de alemão tendem a descrever pontes como “elegantes” ou “bonitas”, enquanto falantes de espanhol preferem adjetivos como “fortes” e “resistentes”.
Esse padrão se repete com outras palavras e revela como o gênero gramatical pode influenciar atributos simbólicos e associações mentais. Isso é especialmente relevante quando se trabalha com tradução criativa, marketing, publicidade ou literatura.
4. Emoções e vocabulário afetivo
Idiomas com vocabulários emocionais mais amplos permitem que os falantes descrevam suas emoções com maior nuance. No japonês, por exemplo, há palavras específicas como natsukashii (uma nostalgia doce e positiva) ou amae (o desejo de ser cuidado ou acolhido), que não têm equivalente direto em português, por exemplo, mas que expressam estados afetivos sutis. E o famoso conceito de Ikigai**:** “razão de ser” ou “propósito de vida”, combinação de paixão, missão, vocação e motivação que faz acordar todos os dias com entusiasmo.
Quanto mais rica for a terminologia emocional de uma língua, maior é a capacidade dos falantes de identificar e processar sentimentos, algo que pode, inclusive, afetar o bem-estar emocional e a forma como lidamos com conflitos ou decisões.
5. Responsabilidade e ação
O idioma também molda a forma como atribuímos responsabilidades a ações. Em inglês, é comum dizer “She broke the vase” (“Ela quebrou o vaso”), mesmo que tenha sido acidental. Já em línguas como o espanhol ou o japonês, é mais comum usar construções impessoais, como “O vaso se quebrou”.
Pesquisas indicam que falantes de inglês tendem a lembrar mais claramente quem causou um incidente, enquanto falantes de outras línguas se lembram mais do evento em si. Isso tem implicações significativas em contextos como julgamentos, investigações ou até avaliações de desempenho.
6. Polidez e estruturas sociais
A gramática de algumas línguas reforça estruturas sociais de maneira explícita. No coreano ou no japonês, existem camadas de formalidade obrigatórias que mudam de acordo com a posição social ou etária do interlocutor, ou a proximidade entre os indivíduos. Essas escolhas linguísticas comunicam respeito, distância, intimidade ou autoridade.
Mesmo em línguas latinas, como o português, o uso de pronomes como “tu”, “você”, “o senhor” ou “a senhora” carrega marcadores de contexto relacional. A forma como nos dirigimos a alguém pode moldar nossa percepção da relação e até influenciar o comportamento do outro.
O papel da tradução nesse cenário
Para tradutores e intérpretes, entender essas especificidades não é um luxo: é uma necessidade, é parte integrante do repertório profissional. Cada idioma carrega estruturas de pensamento próprias, e traduzir é mais do que converter palavras: é transportar significados nos melhores significantes, acertar tons, colorir intenções e transcriar contextos culturais na medida das possibilidades humanas. Ou seja, é preciso mobilizar conhecimentos, habilidades e criatividades em função da humanidade!
Ignorar essas camadas pode resultar em traduções imprecisas, culturalmente inadequadas ou que falhem em transmitir o sentido pretendido pelos falantes ou autores originais. Traduções sensíveis às particularidades humanas, conscientes da diversidade linguística, e inseridas na complexidade cultural têm o poder de ampliar pontes, promover o entendimento intercultural e enriquecer a comunicação global.
Por isso, ao reconhecer o poder da linguagem de moldar nossas percepções, multiplicamos caminhos para intercâmbios culturalmente sensíveis, e comunicações mais empáticas, conscientes e satisfatórias.
Para os profissionais do Catálogo de Tradutores, essa consciência e essa lapidação diferenciam o trabalho técnico – ou mecanicamente artificial – do trabalho verdadeiramente transformador, e humano! Conheça nosso time clicando aqui.