A música latina como expressão de resistência

Artistas latinos buscam a música como forma de denúncia, afirmação e crítica (Fonte: Freepik)

De refrões que incendiavam estádios durante ditaduras às batidas que hoje viralizam nas redes sociais, a música latina, seja de língua espanhola ou portuguesa, sempre foi mais do que entretenimento: é, também, uma ferramenta de resistência, protesto e reivindicação. Em tempos de crise política, instabilidade social e disputas de identidade, artistas de diversas vertentes têm usado suas composições como forma de denúncia, afirmação e crítica. E a poesia engajada encontra eco no coração da juventude, com vozes como Bad Bunny, Residente e Ana Tijoux misturando ritmos populares a discursos incisivos.

Uma tradição histórica de rebeldia sonora

A relação entre música latina e resistência não é nova. Nas décadas de 1960 e 1970, artistas como Mercedes Sosa, Victor Jara e Chico Buarque deram forma a uma canção de protesto que denunciava ditaduras, pobreza e repressão em diversos países da América Latina. A música era instrumento de sobrevivência simbólica: uma forma de falar quando falar era proibido.

Hoje, a repressão pode ter outras formas, mas a música segue trincheira. A diferença é que ela agora circula em plataformas digitais, festivais globais e até nos top charts da Billboard, atingindo audiências internacionais em velocidade inédita.

Residente e a poesia política sem concessões

Ex-vocalista do Calle 13, o porto-riquenho Residente (René Pérez Joglar) é uma das vozes mais contundentes da cena atual. Suas letras combinam crítica social, consciência latino-americana e uma estética musical que foge do padrão comercial.

Em músicas como “Latinoamérica”, Residente celebra a identidade coletiva dos povos latino-americanos: “Soy lo que me enseñó mi padre, el que no quiere a su patria no quiere a su madre”. Já em “René”, o artista mergulha em sua própria vulnerabilidade para falar de saúde mental, fama e desencanto com o mercado da música.

Mas é em faixas como “This is Not America”, com Ibeyi, que sua crítica se internacionaliza, questionando o apagamento histórico das nações latino-americanas e denunciando o imperialismo cultural que reduz “América” aos Estados Unidos. O clipe, difícil de assistir sem querer desviar o olhar, é poderoso e nos lembra que René é também cineasta. Com versos como “Tú no eres América, yo soy América”, Residente vira o mapa e devolve o microfone ao sul global.

Bad Bunny e o pop como palco político

Enquanto Residente constrói narrativas densas, Bad Bunny (Benito Antonio Martinez Ocasio), também porto-riquenho, usa o reggaeton e o trap latino como arma cultural. Ícone da nova geração, ele subverte os códigos populares para abordar temas como identidade de gênero, racismo, colonialismo e violência institucional.

No álbum YHLQMDLG [abreviação para a frase em espanhol “Yo Hago Lo Que Me Da La Gana”], o artista já demonstrava seu compromisso com a liberdade de expressão e o empoderamento de minorias. Mas foi em “El Apagón”, do álbum “Un Verano Sin Ti”, que Bad Bunny explicitou sua crítica mais contundente ao apagão energético em Porto Rico e à privatização de serviços públicos. A faixa veio acompanhada de um documentário que denuncia o deslocamento de comunidades locais para favorecer investimentos estrangeiros e o turismo de elite.

Outro exemplo recente de sua veia política é a música “LO QUE LE PASÓ A HAWAii”, lançada em 2025. A música é uma crítica direta à gentrificação e à exploração do arquipélago por grandes corporações e investidores, que contribuem para a expulsão de comunidades nativas em nome do lucro. Com uma batida introspectiva e versos que mesclam dor e ironia, Bad Bunny constrói uma analogia entre o que acontece em Porto Rico e a transformação de outros territórios insulares em produtos turísticos, uma denúncia contra o neocolonialismo e a perda de identidade local.

Além da música, sua performance pública reforça a mensagem. Bad Bunny já vestiu saias e unhas pintadas no palco, beijou bailarinos em shows e usou prêmios internacionais para denunciar abusos contra a população LGBTQIA+ e contra o povo porto-riquenho. Sua presença nas paradas é política porque mostra que sucesso comercial e consciência crítica não são opostos.

Resistência e ritmo

A força da música latina de resistência está também na sua habilidade de combinar prazer e protesto. Ritmos como salsa, cumbia, funk, reggaeton e trap, historicamente associados ao corpo, à festa e à rua, tornam a mensagem mais acessível e contagiante. Mesmo letras densas são embaladas em ritmos dançantes, o que amplia seu alcance, especialmente entre o público jovem.

Assim, artistas pautam temas complexos sem abandonar a linguagem popular. É uma forma de politizar o cotidiano e provocar reflexão onde poderia haver apenas entretenimento.


A música latina continua sendo território de embate: artistas reivindicam questões estruturais com coragem, sensibilidade e impacto. Ao ocuparem os espaços do pop e do reggaeton, na internet e nos palcos globais, esses músicos dão voz a quem quase nunca é ouvido.

Em tempos de desinformação, censura e crises humanitárias, resistir é também compor. E criar, dançar, cantar e escutar tornam-se, mais do que nunca, atos políticos.

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