É tanta coisa pra falar que até dava um livro

Tradução Literária

Na próxima “encadernação”, minhas letras transbordarão numa sociedade sem dinheiro, só de vida

(Ricardo Silveira)

É tanta coisa pra falar que até dava um livro.

Ops…

Comecei a vida de leitor ainda adolescente (ou quase, criança mesmo) na casa dos meus pais e logo desenvolvi o hábito de anotar os títulos dos livros que eu já tinha lido, e seus respectivos autores, para facilitar a escolha dos próximos, uma vez que os da lista não entravam mais na fila. Mas as estantes da casa eram muitas, enormes, e me mostravam uma quantidade e uma variedade que nem a minha listinha dava conta de catalogar.

Aos 25 anos de idade – e mais de 500 livros computados – comecei a anotar os que eu já tinha traduzido.

Parei de anotar depois que apresentei a lista para o SINTRA e consegui o meu registro de T*R*A*D*U*T*O*R.

Dicas?

Eu prefiro ler o livro todo antes… preferia: mudei de ideia lá pelo 50º. Até o 100º, as editoras ainda mandavam o seu staff revisar. Lá pelo 200º, pararam: deixavam mesmo como eu entregava! Daí eu mesmo diminuí o ritmo, e passei mais para… depois a gente fala disso!

Ou seja, não tem regra: cada um faz a sua. Basta gostar.

Só gostar? Não: é preciso A*D*O*R*A*R. Porque esse trem de tradução cansa! Mas diverte. Eu também gosto de versão…

Não é só paixão pelo ofício: é amor… puro amor!

Diverte e engrandece: se eu posso dizer que cresci, em grande monta, foi por causa dos livros.

Eu comecei na época da máquina de escrever (dá um google que vocês vão saber do que eu tô falando), que era um device interessantíssimo: você digitava e o texto já saía impresso!

A gente marcava com a editora, pegava aquele calhamaço (mesmo um livro pequeno não dava menos do que umas 200, 300 páginas [laudas… as originais]) e ia.

O pessoal do portão já estava esperando a gente:

– Bom dia, Seu Ricardo! Como vai? Gostou do livro?

Quando eu traduzi o de um sexólogo (no caso, um disguise para… com a licença da palavra, sacanagem com background de ciência) então, foi a glória:

– Boa tarde, Seu Ricardo! Como vai? Gostou do livro? …conta pra gente!

Naquele dia, todo mundo arranjou alguma coisa pra fazer na sala da minha editora. Daquela feita, o papinho de 20 ou 30 minutos rendeu mais de duas horas, com zilhares de entradas furtivas e algumas perguntas incontidas:

– Como foi que você traduziu, mostra pra mim, aquela passagem que dizia “assim, assado, cozido e frito”?

(Claro, não posso reproduzir aqui, né?)

Houve outros momentos de glória – querem glória maior do que essa que acabo de contar?

Bom, cada um julga por si. Mas foi muito bom receber uma menção honrosa da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Guardo até o hoje o diplominha… numa moldura, embolorado, no fundo de uma gaveta.

Foi ótimo ver outro livro transformado em filme.

Mas a grande glória mesmo é traduzir, é pegar o livro e se digladiar com ele, é entregar uma obra que não foi você que criou: você recriou. E se recreou.

Criar? Sim, eu criei meus filhos com os livros que traduzi. Hoje em dia ainda traduzo, mas, pra falar a verdade, nem sei mais como são feitas as entregas. Eletronicamente? Só faço livros por encomenda direta do autor; perdi o contato com as editoras. Um lado riquíssimo! Foi-se.

Isso acontece.

A vida muda.

Os programas de software chegam e fazem quase tudo – até traduzem! Mesmo que você discorde…

No curso de interpretação de conferência, o professor discordava de mim, dizia que tradutor era tradutor e intérprete era intérprete. Eu sempre fiz as duas coisas, em paralelo, uma complementando a outra, uma me completando na outra, uma ao vivo em meio a multidões, a outra no refúgio solitário do meu home office.

Hoje, as traduções que faço são mais comerciais: que tristeza é depender de dinheiro pra viver! Na próxima “encadernação”, minhas letras transbordarão numa sociedade sem dinheiro, só de vida.

Mas – não desistam – dá pra direcionar as escolhas e trabalhar só com o que a gente gosta e respeita.

Não vou me estender mais. Só digo uma coisa nestas penúltimas linhas:

– Só vocês sabem a alegria e a tristeza de serem quem vocês são.

– Só vocês sabem a alegria e a tristeza de serem tradutores.

– Só vocês sabem o valor do seu trabalho, o que trouxe vocês até aqui e o que vai levá-los até onde vocês hão de chegar.

E agora encerro com dizeres que surgiram pelas ruas das cidades e tomaram várias formas (não sei a origem):

Me armo de livros. Me livro de armas.

Gratidão ao cartunista, ator e músico Nando Motta

 

Ricardo Silveira: Intérprete de Conferência atuação em diversas áreas mais de 20 anos de experiência / 2.000 dias em cabine + coordenação português A / inglês B / espanhol C Tradutor mais de 100 livros (literários e técnicos para várias editoras) catálogos, revistas, manuais, teses e outras publicações Professor cursos de idiomas / direção universidade aulas particulares Diplomação Interpretação de Conferência, PUC – 1992 Didática Especial da Língua Inglesa, UERJ – 1985 Nivelação em TESOL, CalState Fullerton USA – 1983 Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ – 1980.